“sua mãe”

– ah, eu me lembro… sua mãe passava pela vila com o seu perfume edulcorado, costurando à sua volta a atenção das pessoas. em nosso breve universo de sentidos éramos só olfato e visão. até nós, os meninos zombeteiros e vagabundos da praça, tínhamos narizes e olhos enfileirados, dominados por aquela névoa desconcertante, aquele passar… andava em rimas sua mãe! e quantos sonetos não fez nos mais módicos itinerários: da casa ao mercadinho, do rio para a casa de dona nôzinha, depois ao sossego da rede na varanda da sua casa! sua mãe…

– não me lembro disso.

– tu eras ainda um catarrentozinho ! mas eras gracioso, embora tivesses as pernas tortas.

– eu tinha as pernas tortas?

– ora, se tu ainda as tem ! ah, sua mãe era bela em tudo que fazia… não podia ouvir sequer um canto de pássaro que já se punha em folgança. na sua passagem nós ficávamos em um silêncio de santuário e chegávamos a apostar em que momento seria o bamboleio. por vezes, até conversando com outra pessoa, ao ouvir um som qualquer, continuado e ritmado, ela saracoteava as ancas sem sair do assunto com o interlocutor. era primal, o som harmonioso fazia seus pelos eriçarem e aquilo que era sua mãe, o que era mais intrínseco da sua mãe, berrava a ordem de menear a garupa. creio que se puséssemos o ouvido em seu ventre poderíamos distinguir esse alarde. sua mãe…

– comove-me seu desprendimento em ir ter em outra casa motivos de fala porque em sua própria morada habitava um prodígio. inesquecível para mim era sua mãe.

– minha mãe? minha mãe era muito quieta, discreta… uma mulher honesta e muito ligada ao cotidiano… mas nada de extraordinário fazia… é a sina dos normais e equilibrados…

– mas havia uma anormalidade na sua mãe.

– havia? prefiro não saber o que é, pois por agora estamos falando de sua mãe e o assunto não se esgotou. para a boa organização da conversa não é digno mudar os temas. voltemos à sua mãe: sua mãe era uma fruta carnosa, daquela que miramos nos pontos mais altos das copas das árvores, suculenta, apetecível, desculpe-me por vacilar agora na fala pois meu paladar se manifesta e me tolhe a dicção perfeita… mas apenas tinha a semelhança das aparências pois não era uma fruta tão difícil de colher sua mãe…

– sua mãe era zanôia.

– o que ?

– sua mãe era zanôia de uma forma tão incrível que as pupilas pareciam se tocar. admirávamos sua falta de pudor em sair de casa com aquela cara, aquilo é que era personalidade!!! seria mais digno usar um tapa-olho, mas sua mãe assumia o defeito com um vigor de onça. aliás, que cara de onça ela possuía ! uma cara redonda com duas orelhas de pele sobrando, a cara de sua mãe tinha mais desníveis do que uma bula de remédio em braille. mesmo com toda essa desgraça era um alento vê-la passando com ar de perturbada pelas ruas, nós tínhamos a consciência de que mesmo no nosso dia mais azarado havia gente em situação pior. era a personificação de um programa policial de tv, sua mãe.

– não me lembro de quase nada disso. de fato, minha mãe tinha um certo estrabismo, mas até a medida do charme e não arredava disso. mas como eu estava dizendo, antes de ter minha sequência de pensamento corrompida com sua fala rústica e inconveniente, ainda não falei da principal virtude da sua mãe: a generosidade. o que tinha de bela sua mãe tinha de generosa e isso nela era sabedoria. pois veja que o que consome a beleza não é o seu uso e sim o passar do tempo. o olhar ou qualquer outra manifestação de apreço à formosura não lhe provoca ranhuras. esse saber ela adquiriu através do conhecimento e, religiosa, sua mãe conhecia biblicamente todos do lugar, além das adjacências, pois sua mãe não era de discriminar nem enjeitar nada. você pode bater no peito orgulhoso e dizer: “minha mãe compartilhava vorazmente sua beleza com qualquer criatura viva”. era dadivosa sua mãe…

– mas a beleza não é condição para a generosidade, aos feios também não é negado esse atributo, muito menos aos horríveis como sua mãe, pois a horribilidade é só uma feiura mais intensa, é o feio fazendo careta. bem sabes como era atrasado o vilarejo em que moraste até a idade adulta, experiência que não tive por ter saído cedo do lugar…

– sim, sim, suspeita de roubo é terrível, fizeste a melhor opção.

– enredaram-me em uma trama terrível, mas sem digressões por favor… a vila era atrasada e parca de mulheres, também não havia tv ou rádio…

– uma das diversões era espiar sua mãe banhando-se nua no rio. espiar era coisa tola já que ela voltava nua para casa mesmo e antes ainda passava na mercearia e tomava pinga até a hora do almoço…

– como eu estava dizendo, não tínhamos diversão no lugar, o único passatempo era fazer. não havendo qualquer outra opção, e eu estou incluindo a lista de passageiros da arca de noé no meu discurso, restava sua mãe estrábica, como bem disseste, e sua pele de arame farpado nos ombros. veja esta marca na minha mão, só sei que não sou teu pai por ser mais novo que ti.

– dúvida que eu não posso excluir tão facilmente a teu respeito, porque nossa diferença de idade é suficiente para manter essa interrogação. embora ninguém da minha família tenha essas tuas pernas tortas, nem creio ter vindo isto da belezura da sua mãe. pode ter sido um antepassado meu antigo, um fidalgo de alto renome que veio ter nestas plagas.

– o mendigo ciclope?

– por falar nisso, lembrei-me do que dizem ser seu pai. ah, seu pai…

inspirado em uma cadela que um vizinho batizou de “sua mãe”. “sua mãe” vivia fugindo de casa para ir vadear com os cachorros da vizinhança. “sua mãe” morreu de gonorreia em 1986.

 

Niélsinei Medeiros

 

 

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