O vendedor de Schrödinger

E todo dia ouvimos ao longe gritos de oferta de um produto desconhecido, indistinguível e soberano aos sons da manhã. É logo cedo, às vezes acordo e estão lá os anúncios aos berros, um galo cantando em tirolês. Discutimos do que se trata, montamos teses, teorias, hipóteses, depois adormecemos na bruma do dia e esquecemos, até que uma nova manhã se anuncia com o som incômodo que ganhou o nosso afeto. Pretendo um dia manter isso na memória, vigiar da varanda o vendedor, marcar o horário, e descer à sua espera para, finalmente, para a paz dos espíritos, descobrir o significado daquela toada que se impõe ao barulho da construção ao lado, aos sons de automóveis e pássaros, desvendar esse mistério que nos aflige. Mas passa outro dia e já esqueci.

O que me dificulta é que esse vendedor tem uma frequência intermitente. Isso também é uma peça do enigma, quando ele não vem imagino se ficou doente ou se encontrou outra ocupação e por um momento me preocupo com esse estranho que nem sabe que eu existo. Os gritos de promoção do produto atravessam a via e vão tecendo a manhã, vibrando na indiferença de Bob, o cão circunspecto que se faz de delegado da rua, a senhora pontual que vai sempre no sacolão da esquina, e os funcionários do supermercado mandando o sono embora aos bocejos. Ele anda pela rua sem saída e seus gritos vão perdendo a intensidade até morrer na solidão da distância, como os pedidos de socorro de um náufrago.

Criei um jogo com esse estranho. Quero saber pessoalmente do que se trata, quem sabe eu esteja na entrada do prédio em algum momento que ele passe e eu, secretamente, observe o estranho sem nome e dicção, e ao conhecer finalmente a oferta, me orgulhar em pensamento, ressoando ao longo do dia: eu já sabia. Mas o que vai ser depois de revelado esse segredo, a próxima vez que o ouvir já será algo sem graça, comum, será monotonia. E a manhã perderá uma de suas cores.

Com isso vou procrastinando saber que produto está sendo oferecido, com medo da falta de graça que sucederá a revelação. Assim segue o comerciante do inominável, vendedor de Schrödinger, um dos personagens da rua Jacarandá, sua vida e seu mistério.

Niélsinei Medeiros

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