A vida coreografada

Lembro, faz mais tempo do que eu gostaria, folheei um livro de papel vagabundo, em um sebo, que me dizia que Albert Einstein desaparecera durante três dias, e depois, quando reapareceu, estava sujo de terra e folhas, mas trazia a grande revelação da equação que faz a relação entre massa e energia, E=mc².
Isso tem todo o jeito de ter sido uma grande mentira, mas não questionei na época e até imaginei Albert Einstein passeando pela floresta, concentradíssimo, em lugares da inteligência que nunca foram frequentados antes, quando teve uma súbita iluminação e a equação surgiu em seu transe.

Assim são outras histórias, como a Eureka dita por Arquimedes em sua banheira e a maçã que cai na cabeça de Newton. Os grandes eventos precisam ter esse enxerto da imaginação para se tornarem mais marcantes e memoráveis porque aparentemente a mnemónica da humanidade se baseia em novelizações. Einstein parecia saber as regras desse jogo, como na sua famosa foto com a língua de fora, ali ele quebra qualquer aura de sacralidade em sua imagem, vai na contramão das poses nobres e se humaniza, tornando-se pop pela irreverência.

Normalmente o caminho que se busca é de se impor uma aura de austeridade e nobreza. A narrativa imposta pela imagem funciona como uma prótese da nobreza que falta, Einstein se despe de sua coroa e assim habita entre nós. O caminho ordinário para se tornar memorável acrescenta, falseia, aumentando e inventando, tornando-se uma imagem biônica e montada.

Desse jeito são as biografias de bilionários que nunca concedem as facilidades ou a fortuna original herdada. Esse mundo representado oprime seus crentes porque eles vão em busca de satisfazer o receituário da vida coreografada do novo Olimpo. Há os que descem do Olimpo e assumem suas falhas, mostrando-se humanos como qualquer Deus grego e há os que prendem a respiração indefinidamente para manter sua aparência soberba e divina. Sendo sobre-humanos, podem dizer à reles humanidade o que precisa ser feito para ser igual a eles.

Dadivosos, não proíbem, mas ostentam o fruto mágico que converte humanos em deuses: uma série de exigências monásticas decretando o celibato da vida como fórmula para o sucesso, prescrição que nunca foi seguida pelo próprio médico pois o doente é aquele carente de rituais e doutrinas ditas por uma figura autoritária . E assim vem uma selva de coachs, pastores doutores de Instagram, com seus códigos selvagens, cientes de que sempre existe ser humano desejoso de ser guiado.

O mais curioso é que as crenças se adaptam aos fatos para sobreviver. A realidade insiste em contrariar as crenças, mas elas seguem inexpugnáveis e adaptativas a qualquer evento. Mesmo que seu coach o leve para o alto de uma montanha e ambos tenham que ser resgatados pelos bombeiros. É nesse ponto que a crença recorre ao mistério, ao além, ao que não é cognoscível, todas as desculpas esfarrapadas para permanecer com um guia para o mundo. Melhor segurança do que verdade.

Se um dos cegos é autoconfiante patológico, ele consegue facilmente convencer outros cegos de que enxerga, esse é o caminho dos nossos tempos: a vaidade exagerada dos cegos charlatães esconde os fatos com seus cromaquis e descem ao inferno da memória pela tragédia. Enquanto isso os gênios apenas mostram a língua para os fotógrafos.

Niélsinei Medeiros

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