Testamento da Copa do Catar

Está lá no teto da capela Sistina, Deus se inclina e estende a ponta do dedo para um Adão recostado. É esse o efeito dos grandes eventos mundiais sobre o nosso pequeno cotidiano. É a inflexão do espaço-tempo sobre as nossas miudezas, formando uma infusão de cheiros, sabores, levando as banalidades para o inesquecível. Foi assim que Maradona invadiu o batizado da filha de um vizinho e entre tubaínas e salgadinhos lançou Caniggia sozinho diante de Taffarel. Todos os convidados avançaram sobre o argentino, mas não adiantava, eram só manchas luminosas na TV, uma sequência de fotografias naquela parede, mas como dói. Durante aquele breve e eterno lapso de tempo em que Caniggia desfrutava de sua solidão de zagueiros, comemos coxinhas com gosto de desespero, até o sagrado fim da bola nas redes.

O futebol é politeísta, mas todos os seus deuses derivam da costela do Capital. O deus da copa do Qatar me parece muito atual, com sua repulsa aos direitos humanos e manifestações públicas de afeto. O bilhar cósmico dos fatos nos concede esse símbolo, que a grande representação de lazer nesse planeta esteja sob o debate de inclusão dos diferentes e aceitação dos direitos mais comezinhos da dignidade humana. É este o circo que a nossa era nos legou, o revés da barbaridade Romana intramuros, agora temos a selvageria fora do Coliseu, como a ameaça da floresta sombria que ronda a nossa aldeia. Os microfones da transmissão não captam os gritos de horror, sequer o seu silêncio, isso prejudicaria os apetites de consumo. E mesmo em nosso lazer não se pode usar símbolos representativos de fraternidade e união, é a diversão loteada às custas da nossa decência. Haverá, é claro, as ilhas de álcool, as embaixadas da indústria de bebidas, condomínios incólumes do sincretismo entre capitalismo e religião local. Os vícios sempre encontram uma maneira.

Nesse final de 2022 em que lutamos para não misturar política com futebol, as evidências nos traem com seu gosto amargo de remédio eficaz. A política se espalha por tudo como o oxigênio, transpira na construção dos estádios e nos uniformes das seleções, nas faixas que a torcida carrega e na comemoração prometida pelo jogador.

E tudo isso nos parece natural, esses oito bilhões de testemunhas, sempre à beira de   guerras, enxergando alienígenas em todas as luminosidades, hóspedes hostis à própria sobrevivência nessa hemodiálise de amores e ódios. Faremos o nosso futuro como anjos tortos que somos, membros dessa família disfuncional chamada humanidade.

É preciso se render a esse esquete de comédia encenado em um programa policial, não é uma contradição, mas uma síntese de ecossistema. É preciso esquecer o presídio ao redor, respirar fundo e focar nesse ponto de fuga: futebol como diversão é solução sim. Não me deixam mentir os adeptos da luta armada contra a ditadura militar brasileira, que souberam festejar a vitória de uma seleção usada copiosamente como instrumento de um governo autoritário, em uma de suas fases mais brutais. Nunca sequestrei um embaixador estrangeiro, porém, com gosto de pasta de dente na boca, soube apreciar um fenômeno da natureza, reacionário como a maioria dos gênios desse esporte, driblando pessoas no horário punitivo da Copa de Japão e Coreia, pegando o rebote do imbatível Oliver Kahn e exorcizando nas redes todos os maus presságios. Nesse dia, confesso, o clarão na tela parecia um ovni fazendo movimentos impossíveis e a pasta de dente ficou com sabor de ambrosia. Carrego comigo em meu coração de pequenos tesouros esse e outros afetos incólumes ao tempo e ao amargor da dialética. A infância que ainda acalento se enche de entusiasmo e alegria, à margem de cores de camisa e do mundo brutal que nos espreita. Amém, deuses do futebol.

 

Niélsinei Charles Medeiros da Silva

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